por Douglas Weege
Ao que se refere à oikonomia e o que denominamos teologia econômica? Em O Reino e a Glória Agamben indica que da teologia cristã surgiram dois paradigmas, a saber: a teologia política e a teologia econômica. Para ele, da teologia política “derivam a filosofia política e a teoria moderna da soberania” (2011, p. 13). Da teologia econômica “a biopolítica moderna até o atual triunfo da economia e do governo sobre qualquer outro aspecto da vida social” (Ibid.). Em entrevistas ele deixa claro que esta descoberta se deu através de seu estudo do debate entre Erik Peterson e Carl Schmitt, para quem “todos os conceitos decisivos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados” (RUIZ, 2013). Através do estudo dos mesmos teólogos que Peterson se utiliza para encontrar a gênese da teologia política que anseia refutar, de Schmitt, percebeu um conceito do qual o teólogo protestante depois convertido ao catolicismo, não fez questão de abordar, isto é, a oikonomia. Agamben sente-se instigado, portanto, a fazer uma genealogia deste conceito, com intuito a compreender a governamentalidade contemporânea. Obviamente não há espaço aqui para apresentar minuciosamente tal genealogia, mas uma questão fundamental nos esclarece o motivo pelo qual o conceito é tão importante aos padres da igreja, tais como Justino, Inácio de Antioquia e Tertuliano:
“A exigência nasce no decurso do séc. II, quando se começa a formular aquilo que mais tarde, com os Concílios de Nicéia e de Constantinopla, se tornará o dogma trinitário. Os Padres que começam a elaborar a trindade tinham diante de si adversários, os assim chamados monarquianistas, que afirmavam que Deus era Uno e que, introduzindo outras duas figuras divinas, se corria o risco de recair no politeísmo. O problema consistia na maneira de conciliar a trindade, de que não se podia prescindir, com a monarquia, ou seja, o monoteísmo, igualmente indispensável. A oikonomía é o conceito, o instrumento, o órgão que torna possível tal concepção e tal passagem. O raciocínio é simples: Deus, quanto à sua essência e à sua natureza, é Uno; quanto à sua oikonomía, à gestão do seu oikos, da sua casa, da sua vida divina, pode por sua vez ter um filho e apresentar-se numa figura tríplice. O paradigma gerencial da oikonomía é precisamente o que torna possível a conciliação da trindade com o monoteísmo” [1].
Nesta lógica, a “ação (a economia, mas também a política) não tem nenhum fundamento no ser” (AGAMBEN, 2009, p. 37). Conforme mencionado, enquanto essência, Deus é Uno, mas enquanto oikonomia, tríplice. Essa ruptura entre ser e práxis é o que originará, para Agamben, questões insolúveis na ética moderna. Para deixar minimamente mais claro o conceito de oikonomia basta notar como os padres latinos traduziram este termo, a saber, dispositio. Assim, assumiu “em si toda a complexa esfera semântica da oikonomia teológica” (Ibid., p. 38). Desta forma, a oikonomia é o dispositivo divino para a redenção e salvação da humanidade, ou seja, o aparato providencial de Deus. Mas como vincular e relacionar este conceito com a política da contemporaneidade? Basta lembrar o que Agamben alerta, isto é, que a política atual possui “um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas” (2012). Isto porque, com o tempo, “o poder político no Ocidente assumiu a forma de uma oikonomia, ou seja, de um governo dos homens” (SILVA, 2011, p. 148). Se na doutrina trinitária encontra-se um paradoxo entre ser e práxis ou, como se quiser, entre teologia e oikonomia, na doutrina política contemporânea ocidental deparamo-nos com um parecido mistério, pois enquanto ser, a política contemporânea é democrática, mas enquanto ação está totalmente distante daquela concepção de democracia ateniense, idealizada. Portanto, o modelo político, e de gestão, da contemporaneidade se identifica não com uma economia, mas com a teologia econômica, pois “assim como a dogmática trinitária e a cristologia se formaram juntas e não podem ser divididas, assim também a teologia e a economia não podem ser separadas” (AGAMBEN, 2011, p. 78).
Diante deste tipo bem peculiar de governo é plenamente aceitável “definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos” (Id., 2009, p. 42). No caso da democracia contemporânea os dispositivos são providenciais para manter a ordem, o controle e/ou garantir a “salvação”. Mergulham, desta maneira, o ser humano num habitat diferente do natural, ou seja, a casa do desespero, onde cada indivíduo é livre para trabalhar e, através disto, cultuar sem trégua a(s) divindade(s) do capital, para, quem sabe, salvar-se da culpa. A privação da liberdade que é esta separação do humano com o seu ambiente reproduz, para Agamben, “a cisão que a oikonomia havia introduzido em Deus entre ser e ação” (Ibid., p. 43). Por isso, segundo Agamben, para salvarmos a liberdade humana, que é o teor da luta pela ética, como referido anteriormente, é imprescindível uma tarefa política bem peculiar, isto é, a da profanação.
Profano, conforme a definição de Trebazio[2], “diz-se, em sentido próprio, daquilo que, de sagrado ou religioso que era, é restituído ao uso e à propriedade dos homens” (Ibid., p. 45). Ao contrário, “pode-se definir religião, nessa perspectiva, como aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas do uso comum e as transfere a uma esfera separada” (Ibid., p.45). O sacrifício é o dispositivo que providencia a separação. Já a “profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido” (Ibid.). No entanto, deve-se levar em conta que “o capitalismo e as figuras modernas do poder parecem, nessa perspectiva, generalizar e levar ao extremo os processos separativos que definem a religião” (Ibid., p. 46). Neste sentido, o capitalismo como religião exerce principalmente na atualidade uma tarefa devastadora, a saber, a dessubjetivação, que é característica de um governo, fundado, vale lembrar, numa teologia econômica, preocupado apenas com a sua própria reprodução, ou seja, trata-se de um governo voltado “para a criação de algo absolutamente improfanável” (AGAMBEN, 2007, p. 71). Para compreender a forma pura da separação realizada pela religião capitalista Agamben menciona que:
“como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível” (Ibid.).
Finalmente, é possível verificar, então, que a esfera do consumo é identificada como o espaço em que os objetos, animais ou pessoas são separados e destituídos do uso, neste contexto, impossíveis de profanar. O Museu para Agamben é onde isto se torna mais evidente, pois “os turistas celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrifical que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso” (Ibid., p. 73). Sobre isso, o filósofo ainda aponta para o turismo como representante do culto e altar central da religião capitalista. Neste olhar sobre a ética atual do trabalho para o consumo o ser humano claramente sempre está em dívida, sempre está culpado e jamais se emancipa da lógica religiosa capitalista. Por isso, a tarefa política da profanação tem fundamental importância, pois o exercício profanatório permite, contra os dispositivos do capitalismo, alguma salvação. Neste sentido, explicitamente encontramos na sociedade contemporânea um modelo político e ético fundado no capitalismo, a religião do consumo.
REFERÊNCIAS
[1] Entrevista concedida a Gianluca Sacco,
publicada em: Rivista online, Scuola superiore dell’economia e delle finanze, anno
I, n.6/7, Giugno-Luglio 2004, 07 pp. – http://rivista.ssef.it/site.php?page=stampa&idpagestampa, acessado em 24/07/2004. Tradução
portuguesa de Selvino José Assmann.
[2] Jurista romano.
AGAMBEN,
G. Profanações. Tradução de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo,
2007.
AGAMBEN, G. O que é
o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009.
AGAMBEN, G. O Reino
E A Glória. Tradução de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.
AGAMBEN, G. Deus não
morreu, Ele tornou-se dinheiro. tradução de Selvino J. Assmann. Instituto
Humanitas UNISINUS, 16 agosto 2012. Disponivel em:
. Acesso em:
15 Novembro 2012.
RUIZ, C. B. Giorgio
Agamben, genealogia teológica da economia e do governo, 2013. Disponivel em:
.
Acesso em: 23 out. 2013.
SILVA, A. O. D.
Teologia política do poder. Revista Espaço Acadêmico, n. 125, p.
148-150, Outubro 2011. ISSN 1519-6186.
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