2 de março de 2013

Sobre Schleiermacher


por Douglas Weege
O presente ensaio busca apresentar de modo breve e panorâmico a importância de Friedrich Schleiermacher (1768 – 1834) para a Hermenêutica e, consequentemente, para a Filosofia. Como é sabido Schleiermacher foi um filósofo e teólogo brilhante. Foi professor em Halle e Berlim. Além de ter traduzido os diálogos de Platão para o alemão, contribuiu com diversas outras obras, as quais se destacam os Discursos sobre a Religião, em 1799, e os Monólogos, em 1800. Mesmo tendo sido influenciado por Kant e Fichte não se tornou um idealista subjetivo. Já influenciado pelo Romantismo confiava “na possibilidade de compreender uma ideia de um texto por meio de um retorno até o seu momento de produção” (PEREIRA 2012, 242). Foi com base nesta concepção que contribuiu imensamente com a interpretação teológica no contexto cristão. Através de seu pressuposto, Schleiermacher, somou para que a interpretação das “sagradas escrituras” tivessem os mesmos métodos de interpretação que os textos clássicos da literatura. Portanto, perceberemos que sua contribuição não se reduz a uma ou outra área do conhecimento, mas abarca praticamente todas, pois o que pretende de fato é desenvolver e construir uma hermenêutica geral, que possibilite a plena compreensão dos textos, pois “a hermenêutica é para Schleiermacher a “arte da compreensão”, ou, mais exatamente, uma arte que, como tal, não visa o saber teórico, mas sim o uso prático, isto é, a práxis ou a técnica da boa interpretação de um texto falado ou escrito” (CORETH 1973, 13-14). Vejamos, por isso, nas linhas a seguir, os problemas da compreensão e da linguagem e alguns aspectos da proposta hermenêutica de Schleiermacher.

Problema da compreensão
Mesmo de maneira intuitiva podemos afirmar que não é difícil vislumbrarmos os problemas para compreensão de alguns textos, principalmente aqueles nada contemporâneos. Quando nos detemos a ler textos da literatura clássica nos defrontamos com uma série de barreiras. A primeira delas refere-se a distância temporal. Como compreender o contexto histórico em que o autor do texto estava inserido? De fato, a dificuldade é enorme. Outro problema além da distância temporal e, consequentemente, cultural é o uso das palavras. Pensando apenas na compreensão de textos de nosso tempo a mesma dificuldade imposta na leitura de textos antigos aparece, pois a relativização do uso das palavras e, até mesmo, o uso regional delas já nos impede uma correta compreensão logo na primeira leitura ou audição. É preciso entender em que sentido o autor/pronunciante está utilizando a palavra. Tamanha dificuldade fez com que, por exemplo, criássemos, após a morte de alguns filósofos, dicionários específicos para elucidar em que sentido um determinado filósofo está usando determinada palavra. Ou mesmo em vida, pensadores demonstraram seus próprios usos das palavras e as definições que estão usando nesta ou naquela obra. De fato, a compreensão dos textos não é tão fácil quanto parece. Entretanto, parece que a hermenêutica e o desenvolvimento dela por parte de Schleiermacher nos dá alguma esperança quanto a este problema. Nós mesmos nos dias atuais precisamos explicar antes de tudo que palavras utilizaremos para referir tal coisa. Por que utilizaremos tais palavras e não outras? Em que sentido as utilizaremos? São outras perguntas que recaem sobre nós.
Schleiermacher, tido como pai da teologia liberal, de formação reformada, sem dúvida foi muito influenciado pela época em que vivia para buscar e defender uma plena e coerente interpretação bíblica. Nos dias de hoje, ficaria atordoado com tanta besteira que se fala com base nas escrituras que tanto estudou. Entretanto, como sabemos, sua aventura neste universo não se reduziu apenas a interpretação teológica, mas também, filosófica, literária, etc.. Neste sentido, existe, antes de Schleiermacher, “de um lado, uma filologia dos textos clássicos, sobretudo os da antiguidade greco-latina, e, de outro, uma exegese dos textos sagrados, o Antigo e o Novo Testamentos” (RICOER 1990, 20). É possível verificar, assim, que a “arte da compreensão”, como menciona Coreth, difere de uma abordagem filológica, exegética e genealógica. A diferença em relação a esta última abordaremos em outro momento.Vejamos agora brevemente outro problema, o da linguagem.

Problema da linguagem
Pensar nos problemas de linguagem é pensar em um conjunto de problemas bastante extenso. Obviamente não conseguiremos aqui abarcar nem o mínimo do necessário para uma análise mais rigorosa de tais problemas. Nossa pretensão também não é esse. Vale expor aqui apenas alguns exemplos pelos quais a linguagem nos deixa(ou) em situação complicada.
Uma das polêmicas esboçadas tradicionalmente na questão da linguagem é se as palavras dizem, de fato, as coisas. Não é preciso muito para perceber o problema. Tínhamos na antiguidade duas teses centrais que são debatidas no diálogo Crátilo de Platão. Uma tese, a naturalista, defendia que existe uma única denominação correta para cada coisa. A outra tese, a convencionalista, defendia que tais denominações são meras convenções. Platão buscou refutar as duas concepções buscando um equilíbrio entre as duas. Sua abordagem parece bem sucedida, mesmo assim, sua conclusão ainda deixou lacunas.
Outras questões que podemos levantar são: Por que uma palavra pode referir-se a mais de um objeto? Ou, ao contrário: Por que um objeto pode ser denominado por mais de uma palavra/nome? Qual a relação entre linguagem e pensamento? É possível pensar sem a linguagem? É possível existir uma frase que não expresse pensamento? Etc.. Como é possível notar, várias destas questões dificilmente possuem respostas. Podemos até responder tais questões, mas será possível respondê-las satisfatoriamente? Penso que, por exemplo, explicar a construção de uma frase que não expresse algum pensamento é um tanto complicado, ainda que possamos escrever frases sem sentido. Explicar, então, a possibilidade de pensamento sem a linguagem parece ainda mais obscuro.
Poderíamos ainda esboçar as principais questões pelas quais diversos filósofos, tais como, Locke, Frege, Wittgenstein, Russel, dentre outros, como o próprio Schleiermacher, se detiveram com relação a linguagem. Mas verificamos brevemente que as perguntas não são poucas. Locke, por exemplo, menciona que “as palavras, na sua imediata significação, são sinais sensíveis de suas ideias, para quem as usa” (1978, 223). Frege em outro quesito “postulou que todas as expressões designadoras de objetos, os termos singulares da lógica, tais como os nomes próprios, as descrições definidas e os pronomes, expressariam um sentido e designariam um objeto” (BRAIDA, Filosofia e Linguagem 2012, 110), e ainda propôs que “o pensamento, atividade essencialmente conceitual, por conseguinte, não é mais concebido como um estado ou representação mental, mas antes como o sentido de uma sentença” (Ibid., 124). Assim, poderíamos expor diversas definições dos vários filósofos que se debruçaram sobre a linguagem, entretanto, ainda nos haveriam dúvidas imensas e muitas questões. Vejamos, porém, ainda que sumariamente, como Schleiermacher lida, em sua arte, com os problemas da compreensão e da linguagem.

Hermenêutica geral
Como mencionamos no início de nossa abordagem a pretensão de Schleiermacher é o de uma hermenêutica geral, que difere da filologia, exegese e genealogia, pois abarca a compreensão em sua totalidade. E agora sugerimos a questão: o que vem a ser esta compreensão? Conforme Coreth, Schleiermacher difere o que ele chama de compreensão divinatória e compreensão comparativa. A primeira só é realizável de forma plena “entre espíritos aparentados e significando uma adivinhação espontânea, oriunda de uma empatia viva, de uma vivência naquele que se quer compreender” (CORETH 1973, 19). Já a segunda é aquela que “se apoia em uma multiplicidade de conhecimentos objetivos, gramaticais, históricos, deduzindo o sentido a partir da comparação ou do contexto dos enunciados” (Ibidem). Evidencia-se aí um chamado círculo hermenêutico, onde a compreensão divinatória e a compreensão comparativa precisam estreitar relação. Coreth ainda alude que Schleiermacher pode definir a hermenêutica como a “reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado discurso” (Ibidem). Obviamente é possível reconhecer aí o aspecto teológico influente em Schleiermacher. Mas deixando este aspecto de lado, notamos que o apelo do filósofo é para que os interpretes/hermeneutas tenham uma vivência plena com o determinado autor do texto analisado. É preciso que o hermeneuta compreenda plenamente a cultura e contexto histórico em que determinado texto foi escrito para que tanto o problema da compreensão quanto o problema da linguagem, assim como outros nestes implícitos, se resolvam.
É importante salientar que esta abordagem de Schleiermacher possui duas marcas fundamentais, isto é: romântica e critica. “Romântica por seu apelo a uma relação viva com o processo de criação e crítica por seu desejo de elaborar regras universalmente válidas da compreensão” (RICOER 1990, 20). Deste modo o clímax será: “Crítica é o propósito de lutar contra a não-compreensão em nome do famoso adágio: “há hermenêutica, onde houver não-compreensão”; romântica é o intuito de “compreender um autor tão bem, e mesmo melhor  do que ele mesmo se compreendeu”” (Ibidem). Ora, como vemos, a pretensão de Schleiermacher de fato é universal e objetiva. Ricoer, neste sentido, tem várias críticas. Para ele não há como aplicar simultaneamente a interpretação gramatical e a interpretação técnica concebida na obra de Schleiermacher. Assim, Schleiermacher, para Ricoer, precisa levar em conta: “considerar a língua comum é esquecer o escritor, compreender um autor singular é esquecer sua língua que é apenas atravessada. Ou percebemos aquilo que é comum, ou então percebemos aquilo que é próprio” (Ibid., 22). Deste modo, somos obrigados a concordar com Ricoer e reconhecer esta lacuna em Schleiermacher.
Com base no que já mencionamos, podemos destacar a principal contribuição, dentre muitas,  na hermenêutica de Schleiermacher, isto é: “o signo linguístico não tem um sentido determinado fora da frase e, por sua vez, a frase mesma só adquire um sentido no contexto de um inteiro discurso” (BRAIDA, 1997, 5). Este princípio foi de muita importância em várias áreas, mas se destacou no campo teológico. Até os dias de hoje nas escolas teológicas reformadas, de teologia mais aberta, a praxis hermeneutica fundamental e inicial é esta. Em outras palavras, Schleiermacher chama a atenção dos hermeneutas para o contexto de proferimento. Não se pode desprezá-lo de maneira alguma, ao contrário, deve-se levar em conta em sua totalidade.  Em suma, conforme Braida, “o objeto da interpretação vai das partículas e palavras isoladas até o inteiro domínio da língua, o qual por sua vez é parte do mundo histórico” (Ibid., 6).

Concluindo...
Esboçamos brevemente poucos aspectos sobre o problema da compreensão e da linguagem com intuito de apenas salientar de maneira bastante introdutória toda a complexidade do problema com que o hermeneuta está envolto. A seguir apontamos alguns pouco aspectos da hermenêutica geral de Schleiermacher com a pretensão de explicitar um dos aspectos fundamentais de sua teoria, a saber, a primazia dada ao contexto do proferimento. Obviamente, muito mais pode ser explorado e analisado na construção do filósofo, mas coube neste breve trabalho apenas demonstrar, ainda que de forma bastante rasa, um pouco da imensa contribuição do pensador para a filosofia contemporânea, bem como, outras áreas.


Bibliografia

BRAIDA, C. R. Filosofia e Linguagem. Florianópolis: Rocca Brayde, 2012.

—. Schleiermacher e os fundamentos da hermenêutica. Florianópolis, 1997.

CORETH, E. Questões fundamentais de hermenêutica. Tradução: Carlos Lopes de Matos. São Paulo, SP: EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.

LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução: Anoar Aiex. São Paulo: V. Civita, 1978.

PEREIRA, V. M. “A hermenêutica de Schleiermacher e a questão da individualidade.” Argumentos, 2012: 242-249.

RICOER, P. Interpretação e ideologias. Tradução: Hilton Japiassú. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1990.



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