por Douglas Weege
O
presente ensaio busca apresentar de modo breve e panorâmico a importância de
Friedrich Schleiermacher (1768 – 1834) para a Hermenêutica e, consequentemente,
para a Filosofia. Como é sabido Schleiermacher foi um filósofo e teólogo
brilhante. Foi professor em Halle e Berlim. Além de ter traduzido os diálogos
de Platão para o alemão, contribuiu com diversas outras obras, as quais se
destacam os Discursos sobre a Religião,
em 1799, e os Monólogos, em 1800. Mesmo
tendo sido influenciado por Kant e Fichte não se tornou um idealista subjetivo.
Já influenciado pelo Romantismo confiava “na
possibilidade de compreender uma ideia de um texto por meio de um retorno até o
seu momento de produção” (PEREIRA 2012, 242) . Foi com base nesta
concepção que contribuiu imensamente com a interpretação teológica no contexto
cristão. Através de seu pressuposto, Schleiermacher, somou para que a
interpretação das “sagradas escrituras” tivessem os mesmos métodos de
interpretação que os textos clássicos da literatura. Portanto, perceberemos que
sua contribuição não se reduz a uma ou outra área do conhecimento, mas abarca
praticamente todas, pois o que pretende de fato é desenvolver e construir uma
hermenêutica geral, que possibilite a plena compreensão dos textos, pois “a hermenêutica é para Schleiermacher a “arte
da compreensão”, ou, mais exatamente, uma arte que, como tal, não visa o saber
teórico, mas sim o uso prático, isto é, a práxis ou a técnica da boa
interpretação de um texto falado ou escrito” (CORETH 1973, 13-14) . Vejamos, por isso,
nas linhas a seguir, os problemas da compreensão e da linguagem e alguns
aspectos da proposta hermenêutica de Schleiermacher.
Problema da compreensão
Mesmo
de maneira intuitiva podemos afirmar que não é difícil vislumbrarmos os
problemas para compreensão de alguns textos, principalmente aqueles nada
contemporâneos. Quando nos detemos a ler textos da literatura clássica nos
defrontamos com uma série de barreiras. A primeira delas refere-se a distância
temporal. Como compreender o contexto histórico em que o autor do texto estava
inserido? De fato, a dificuldade é enorme. Outro problema além da distância
temporal e, consequentemente, cultural é o uso das palavras. Pensando apenas na
compreensão de textos de nosso tempo a mesma dificuldade imposta na leitura de
textos antigos aparece, pois a relativização do uso das palavras e, até mesmo,
o uso regional delas já nos impede uma correta compreensão logo na primeira leitura
ou audição. É preciso entender em que sentido o autor/pronunciante está
utilizando a palavra. Tamanha dificuldade fez com que, por exemplo, criássemos,
após a morte de alguns filósofos, dicionários específicos para elucidar em que
sentido um determinado filósofo está usando determinada palavra. Ou mesmo em
vida, pensadores demonstraram seus próprios usos das palavras e as definições
que estão usando nesta ou naquela obra. De fato, a compreensão dos textos não é
tão fácil quanto parece. Entretanto, parece que a hermenêutica e o
desenvolvimento dela por parte de Schleiermacher nos dá alguma esperança quanto
a este problema. Nós mesmos nos dias atuais precisamos explicar antes de tudo
que palavras utilizaremos para referir tal coisa. Por que utilizaremos tais
palavras e não outras? Em que sentido as utilizaremos? São outras perguntas que
recaem sobre nós.
Schleiermacher,
tido como pai da teologia liberal, de formação reformada, sem dúvida foi muito
influenciado pela época em que vivia para buscar e defender uma plena e
coerente interpretação bíblica. Nos dias de hoje, ficaria atordoado com tanta
besteira que se fala com base nas escrituras que tanto estudou. Entretanto,
como sabemos, sua aventura neste universo não se reduziu apenas a interpretação
teológica, mas também, filosófica, literária, etc.. Neste sentido, existe,
antes de Schleiermacher, “de um lado, uma
filologia dos textos clássicos, sobretudo os da antiguidade greco-latina, e, de
outro, uma exegese dos textos sagrados, o Antigo e o Novo Testamentos” (RICOER
1990, 20) .
É possível verificar, assim, que a “arte da compreensão”, como menciona Coreth,
difere de uma abordagem filológica, exegética e genealógica. A diferença em
relação a esta última abordaremos em outro momento.Vejamos agora brevemente
outro problema, o da linguagem.
Problema da linguagem
Pensar
nos problemas de linguagem é pensar em um conjunto de problemas bastante
extenso. Obviamente não conseguiremos aqui abarcar nem o mínimo do necessário
para uma análise mais rigorosa de tais problemas. Nossa pretensão também não é
esse. Vale expor aqui apenas alguns exemplos pelos quais a linguagem nos deixa(ou)
em situação complicada.
Uma
das polêmicas esboçadas tradicionalmente na questão da linguagem é se as
palavras dizem, de fato, as coisas. Não é preciso muito para perceber o
problema. Tínhamos na antiguidade duas teses centrais que são debatidas no
diálogo Crátilo de Platão. Uma tese, a naturalista,
defendia que existe uma única denominação correta para cada coisa. A outra
tese, a convencionalista, defendia
que tais denominações são meras convenções. Platão buscou refutar as duas
concepções buscando um equilíbrio entre as duas. Sua abordagem parece bem
sucedida, mesmo assim, sua conclusão ainda deixou lacunas.
Outras
questões que podemos levantar são: Por que uma palavra pode referir-se a mais
de um objeto? Ou, ao contrário: Por que um objeto pode ser denominado por mais
de uma palavra/nome? Qual a relação entre linguagem e pensamento? É possível
pensar sem a linguagem? É possível existir uma frase que não expresse
pensamento? Etc.. Como é possível notar, várias destas questões dificilmente possuem
respostas. Podemos até responder tais questões, mas será possível respondê-las
satisfatoriamente? Penso que, por exemplo, explicar a construção de uma frase
que não expresse algum pensamento é um tanto complicado, ainda que possamos
escrever frases sem sentido. Explicar, então, a possibilidade de pensamento sem
a linguagem parece ainda mais obscuro.
Poderíamos
ainda esboçar as principais questões pelas quais diversos filósofos, tais como,
Locke, Frege, Wittgenstein, Russel, dentre outros, como o próprio
Schleiermacher, se detiveram com relação a linguagem. Mas verificamos
brevemente que as perguntas não são poucas. Locke, por exemplo, menciona que “as palavras, na sua imediata significação,
são sinais sensíveis de suas ideias, para quem as usa” (1978, 223). Frege em outro quesito “postulou que todas as expressões
designadoras de objetos, os termos singulares da lógica, tais como os nomes
próprios, as descrições definidas e os pronomes, expressariam um sentido e
designariam um objeto” (BRAIDA, Filosofia e Linguagem
2012, 110) ,
e ainda propôs que “o pensamento, atividade essencialmente conceitual, por
conseguinte, não é mais concebido como um estado ou representação mental, mas
antes como o sentido de uma sentença”
(Ibid., 124). Assim, poderíamos expor diversas
definições dos vários filósofos que se debruçaram sobre a linguagem,
entretanto, ainda nos haveriam dúvidas imensas e muitas questões. Vejamos,
porém, ainda que sumariamente, como Schleiermacher lida, em sua arte,
com os problemas da compreensão e da linguagem.
Hermenêutica geral
Como mencionamos no início de nossa abordagem a
pretensão de Schleiermacher é o de uma hermenêutica geral, que difere da
filologia, exegese e genealogia, pois abarca a compreensão em sua
totalidade. E agora sugerimos a questão: o que vem a ser esta compreensão?
Conforme Coreth, Schleiermacher difere o que ele chama de compreensão
divinatória e compreensão comparativa. A primeira só é realizável de
forma plena “entre espíritos aparentados e significando uma adivinhação
espontânea, oriunda de uma empatia viva, de uma vivência naquele que se quer
compreender” (CORETH 1973, 19) . Já a segunda é
aquela que “se apoia em uma multiplicidade de conhecimentos objetivos,
gramaticais, históricos, deduzindo o sentido a partir da comparação ou do
contexto dos enunciados” (Ibidem). Evidencia-se aí um chamado círculo hermenêutico,
onde a compreensão divinatória e a compreensão comparativa
precisam estreitar relação. Coreth ainda alude que Schleiermacher pode definir
a hermenêutica como a “reconstrução histórica e divinatória, objetiva e
subjetiva, de um dado discurso” (Ibidem). Obviamente é possível reconhecer
aí o aspecto teológico influente em Schleiermacher. Mas deixando este aspecto
de lado, notamos que o apelo do filósofo é para que os interpretes/hermeneutas
tenham uma vivência plena com o determinado autor do texto analisado. É preciso
que o hermeneuta compreenda plenamente a cultura e contexto histórico em que
determinado texto foi escrito para que tanto o problema da compreensão
quanto o problema da linguagem, assim como outros nestes implícitos, se
resolvam.
É importante salientar que esta abordagem de
Schleiermacher possui duas marcas fundamentais, isto é: romântica e critica. “Romântica
por seu apelo a uma relação viva com o processo de criação e crítica por seu
desejo de elaborar regras universalmente válidas da compreensão” (RICOER 1990, 20) . Deste modo o clímax
será: “Crítica é o propósito de lutar contra a não-compreensão em nome do
famoso adágio: “há hermenêutica, onde houver não-compreensão”; romântica é o
intuito de “compreender um autor tão bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu””
(Ibidem). Ora, como vemos, a pretensão de Schleiermacher de fato é universal e
objetiva. Ricoer, neste sentido, tem várias críticas. Para ele não há como
aplicar simultaneamente a interpretação gramatical e a interpretação técnica concebida
na obra de Schleiermacher. Assim, Schleiermacher, para Ricoer, precisa levar em
conta: “considerar a língua comum é esquecer o escritor, compreender um
autor singular é esquecer sua língua que é apenas atravessada. Ou percebemos
aquilo que é comum, ou então percebemos aquilo que é próprio” (Ibid., 22). Deste
modo, somos obrigados a concordar com Ricoer e reconhecer esta lacuna em
Schleiermacher.
Com base no que já mencionamos, podemos destacar a principal
contribuição, dentre muitas, na hermenêutica
de Schleiermacher, isto é: “o signo
linguístico não tem um sentido determinado fora da frase e, por sua vez, a
frase mesma só adquire um sentido no contexto de um inteiro discurso”
(BRAIDA, 1997, 5). Este princípio foi de muita importância em várias áreas, mas
se destacou no campo teológico. Até os dias de hoje nas escolas teológicas
reformadas, de teologia mais aberta, a praxis
hermeneutica fundamental e inicial é esta. Em outras palavras,
Schleiermacher chama a atenção dos hermeneutas para o contexto de proferimento.
Não se pode desprezá-lo de maneira alguma, ao contrário, deve-se levar em conta
em sua totalidade. Em suma, conforme
Braida, “o objeto da interpretação vai
das partículas e palavras isoladas até o inteiro domínio da língua, o qual por
sua vez é parte do mundo histórico” (Ibid., 6).
Concluindo...
Esboçamos brevemente poucos aspectos sobre o problema da compreensão e da linguagem com intuito de apenas salientar de maneira bastante
introdutória toda a complexidade do problema com que o hermeneuta está envolto.
A seguir apontamos alguns pouco aspectos da hermenêutica
geral de Schleiermacher com a pretensão de explicitar um dos aspectos
fundamentais de sua teoria, a saber, a primazia dada ao contexto do
proferimento. Obviamente, muito mais pode ser explorado e analisado na
construção do filósofo, mas coube neste breve trabalho apenas demonstrar, ainda
que de forma bastante rasa, um pouco da imensa contribuição do pensador para a
filosofia contemporânea, bem como, outras áreas.
Bibliografia
BRAIDA, C. R. Filosofia e Linguagem. Florianópolis: Rocca Brayde, 2012.
BRAIDA, C. R. Filosofia e Linguagem. Florianópolis: Rocca Brayde, 2012.
—. Schleiermacher e os fundamentos da hermenêutica.
Florianópolis, 1997.
CORETH, E. Questões fundamentais de hermenêutica. Tradução:
Carlos Lopes de Matos. São Paulo, SP: EPU, Ed. da Universidade de São Paulo,
1973.
LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução: Anoar
Aiex. São Paulo: V. Civita, 1978.
PEREIRA, V. M. “A hermenêutica de Schleiermacher e a questão da
individualidade.” Argumentos, 2012: 242-249.
RICOER, P. Interpretação e ideologias. Tradução: Hilton Japiassú.
Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1990.
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