por Douglas Weege
Pressuponho que o leitor conheça minimamente as concepções de autonomia dos filósofos Immanuel Kant
e John Stuartt Mill, assunto abordado pelos autores nas obras Fundamentação
da metafísica dos costumes e On
liberty, respectivamente. Com isso, a proposta é investigar as diferentes aplicações
dessas concepções na ética biomédica.
Para
analisar essas aplicações dos conceitos de autonomia é preciso lidar,
obviamente, com casos concretos. Por isso, cabe a pergunta: que aplicações têm
as concepções de autonomia de Kant e Mill acerca, por exemplo, da eutanásia? Pois
bem, vale dizer que há uma variedade de classificações para a eutanásia, como
se pode notar com a seguinte colocação de Possamai: “atualmente utilizam-se várias
classificações para a eutanásia: eutanásia ativa e passiva; eutanásia
voluntária, não voluntária e involuntária. Muitos autores se referem ainda aos
termos distanásia, mistanásia e ortotanásia” (2009, p. 65) . Não cabe aqui
apresentar cada classificação, mas apenas dizer que será utilizada a noção de
eutanásia voluntária para o que aqui se propõe, ou seja, a que “ocorre por
vontade expressa e autônoma do
indivíduo” (POSSAMAI, 2009, p. 65, grifo meu) .
Como
é sabido, nem Kant nem Mill analisaram de forma específica a questão da
eutanásia voluntária. Como, então, supor suas visões a respeito? Ora, a partir
das suas concepções de autonomia. Com relação a
Kant, um exemplo clássico dele mesmo para pensar se a ação de um indivíduo em
determinada circunstância pode tornar-se lei moral é eficiente aqui. Trata-se
de sua análise em relação ao suicídio. Ele assim argumenta:
“Uma
pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente tédio da vida,
mas está ainda bastante em posse da razão para poder perguntar a si mesmo se
não será talvez contrário ao dever para consigo mesmo atentar contra a própria
vida. E procura agora saber se a máxima da sua acção se poderia tornar em lei universal
da natureza. A sua máxima, porém, é a seguinte: Por amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida,
prolongando-se, me ameaça mais com desgraças do que me promete alegrias, devo
encurtá-la. Mas pergun-ta-se agora se este princípio do amor de si mesmo se
pode tornar em lei universal da natureza. Vê-se então em breve que uma
natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo
objectivo é suscitar a sua // conservação, se contradiria a si mesma e portanto
não existiria como natureza. Por conseguinte aquela máxima não poderia de forma
alguma dar-se como lei universal da natureza, e portanto é absolutamente
contrária ao princípio supremo de todo o dever” (KANT, 2007, p. 60, grifo meu) .
Na
argumentação kantiana acima é importante fitar os olhos no que foi grifado. Se,
por um lado, corre-se algum risco em supor o pensamento do filósofo alemão em
relação à eutanásia voluntária a partir de sua abordagem sobre o suicídio, por
outro, parece que a máxima capaz de levar um indivíduo a pensar em findar sua
vida seja por motivos de saúde seja por outros parece ser a mesma. Por isso, o
exemplo é útil aqui. No artigo, já citado, intitulado Autonomia e dignidade em Kant e a eutanásia voluntária, de Fábio Valenti Possamai, pesquisador
do laboratório de bioética e ética aplicada a animais da PUCRS, publicado em
outubro de 2009, o autor utiliza-se de um exemplo do livro Domínio da Vida, de Ronald Dworkin, para refletir acerca do
pensamento kantiano em relação à eutanásia voluntária. Pois bem, para resumir,
Possamai muito brevemente indica a noção do imperativo categórico kantiano (Clique aqui para saber sobre os imperativos kantianos) para
surpreendentemente concluir que: “pensando a respeito, acreditamos que seria
melhor viver em um mundo onde todos pudessem – em determinadas situações
e sob certas condições – escolher se gostariam ou não de viver. A eutanásia voluntária, assim, “passa no
teste” do imperativo categórico” (2009, p. 68-9,
grifo meu) .
Passa no teste do imperativo categórico? É preciso analisar.
Particularmente, considero
a interpretação de Possamai um tanto equivocada. Levando em conta o imperativo
categórico kantiano, bem como sua concepção de autonomia o que parece ficar claro é justamente o contrário, isto é, que a
máxima justificadora da prática da eutanásia voluntária não passa pelo crivo que
o filósofo estabelece para vir a ser uma lei moral e/ou um princípio universal.
O próprio Kant menciona ao final do trecho sobre o suicídio, citado
anteriormente, que “aquela máxima não poderia de forma alguma dar-se como lei
universal da natureza, e, portanto, é absolutamente contrária ao princípio
supremo de todo o dever” (KANT, 2007,
p. 60) .
Além disso, é preciso lembrar que Kant atribui ao ser humano valor absoluto e
no caso da eutanásia voluntária fica evidente que o indivíduo está sendo
tratado como meio para um determinado fim, coisa inaceitável na ética kantiana.
Neste sentido, a colocação abaixo é excelente:
No
caso de um individuo que procura um profissional de saúde para praticar a
eutanásia, com o intuito de se livrar de uma situação insuportável, pode-se
considerar que ele está usando a humanidade em sua pessoa simplesmente como um
meio, pois a finalidade do ato é se livrar de uma situação penosa. Portanto a
máxima na qual se permite tirar a própria vida, devido uma situação penosa,
sempre será imoral, pois nela a humanidade não tem um fim em si mesmo. De
maneira, que tal máxima, não estando de acordo com imperativo categórico (que
é a expressão da lei moral em forma de mandamento), não pode ser
universalizada, e, por conseguinte uma máxima moral (FODERARIO,
2008, p. 10) .
Portanto,
a autonomia em Kant não pode ser confundida com uma mera
escolha livre do indivíduo, mas, conforme o professor Darlei Dall’Agnol, como
“auto-imposição de leis morais universais” (2014, p. 10) . Deste modo,
verifica-se que a aplicação da concepção kantiana de autonomia restringe,
impede e proibi toda e qualquer ação/escolha individual que não possa se tornar
uma lei universal. Se para alguns isso parece, de algum modo, negativo, por
limitar severamente as ações individuais, é preciso dizer que, por outro lado, a
ética kantiana possibilita um método bastante razoável para verificação, de
fato, de uma boa vontade e/ou agir
ético.
Tendo
em vista o mesmo exemplo, da eutanásia voluntária, como supor a posição
milliana? É aceito comumente que o conceito de autonomia de Mill é muito mais permissivo
que a de Kant. Portanto, se em Kant há um critério bastante rigoroso para a
ação do indivíduo, o mesmo não ocorre, a primeira vista, em Mill. Na abordagem
milliana pode-se lembrar de um único limite imposto para a liberdade
individual, a saber, a liberdade dos outros. Em outras palavras, o ser humano,
segundo a noção de autonomia milliana, pode e tem o direito de ter e fazer qualquer escolha, desde que não cause
dano a outrem. Pois bem, pensando no caso da eutanásia voluntária, a quem o
indivíduo que faz tal opção pode causar dano? A resposta a essa pergunta não é
tão fácil quanto alguns supõem. Isso porque não temos uma concepção rigorosa e
precisa acerca do que é o “dano”, mesmo na obra de Mill. De maneira quase
intuitiva muitos comentadores, que se dedicaram a analisar este ponto, assumem
que a concepção milliana de autonomia permite a eutanásia voluntária, já que
nesta escolha individual a pessoa não causa dano, conforme o entendem, a outro
indivíduo e, além disso, promove a maior quantidade de felicidade ao maior
número de pessoas. Embora, reconhece-se aqui a necessidade de um maior rigor para
a concepção milliana de “dano”, verifica-se, como exposto, que a maioria dos
intérpretes não tem dificuldades em reconhecer a permissividade que o conceito
de autonomia de Stuartt Mill infere na ética biomédica. Talvez, por isso, pela
ênfase na escolha do paciente em detrimento da visão paternalista da tradição
hipocrática, Mill tenha ganhado mais espaço na realidade diária da medicina do
que Kant. Essa predominância milliana é, em grande medida, ocasionada pela obra
já mencionada Princípios de ética biomédica,
de Tom Beauchamp e James Childress, que adotam claramente a concepção milliana
de autonomia ao invés da kantiana, apesar de assumirem a noção de Kant de que o
ser humano deve ser tratado com fim em si mesmo.
Pois
bem, outros casos não necessitam ser analisados, pois no exemplo utilizado já
se pode supor a visão geral de uma ou outra concepção de autonomia no que se
referem às decisões a serem tomadas diante das inúmeras situações possíveis. A
marca característica da autonomia kantiana é o rigor metodológico de sua
aplicação, o que faz de sua ética muito mais restrita, isto é, proibitiva. No
caso de Mill, ao contrário, supõe-se uma possibilidade maior, por exemplo, dos
indivíduos optarem, de fato, pela eutanásia voluntária. Em casos como o aborto,
melhoramento genético, entre outras possibilidades, as aplicações não são
diferentes. Kant sempre exigirá uma ação por
dever, enquanto Mill incentivará a escolha individual sem que se cause dano
a alguém. Embora, conhecida as concepções de autonomia e explicitada muito brevemente aqui suas aplicações na ética biomédica,
isto é, mesmo estando claro que a ética kantiana é mais restritiva do que a de
Mill, é importante ressaltar que tanto um quanto outro não atribuem a concepção
de autonomia uma ação universalmente individual, como é muito comum pensar pelo
senso comum. Ambos estabelecem limites para a ação humana autônoma. Kant mais
do que Mill. Mesmo assim, nem Mill pode ser acusado, ao defender a liberdade
individual, de retirar do indivíduo toda e qualquer responsabilidade de sua
ação, mas, ao contrário, impõe um limite e este, assim como o de Kant, não é
tão simples de ser seguido. Fato é que existem outras concepções distintas de autonomia e, consequentemente, outras aplicações possíveis em casos como a eutanásia. Entretanto, como Kant e Mill são os mais evidentes nesse debate, coube apresentá-los muito sucintamente aqui. Para não concluir é importante dizer: a discussão continua aberta.
Fontes Bibliográficas:
DALL'AGNOL, D.
Filosofia e bioética no debate público brasileiro. Ideias, Campinas, n.
4, p. 95-121, 1o semestre 2012. Acesso em: 2014.
DALL'AGNOL, D. Aplicando
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Florianópolis, 2014.
FODERARIO, V. E. A
eutanásia voluntária vista a partir do princípio de autonomia em Kant,
2008. Disponivel em:
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Acesso em: 18 ago. 2014.
KANT, I. Fundamentação
da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. 1a. ed. Lisboa:
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KENNY, A. Ética. Crítica
na rede, 2005. Disponivel em:
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MILL, J. S. On Liberty. Kitchener: Batuche Books, 2001.
POSSAMAI, F. V.
Autonomia e dignidade em Kant e a eutanásia voluntária. Kínesis, v. I,
n. 2, p. 64-72, outubro 2009.
REALE, G.; ANTISERI, D.
História da Filosofia, 5: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo:
Paulus, 2005.
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