Douglas Weege
Introdução
Olhando atentamente para o presente século e os problemas
que o rodeiam é fácil notar a influência de dois grandes pensadores na
atualidade. De maneira geral, no ambiente acadêmico contemporâneo, todos, de
alguma maneira, já ouviram falar de Sigmund Freud (1856 – 1939) e Max Weber
(1864 – 1920). Um é patrono da psicanálise, o outro da sociologia. Um tem como
uma de suas principais obras “O Mal Estar Na Civilização”, o outro “A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo”. O que tais autores podem ter em comum?
Quais as relações que podemos encontrar em suas obras? Que instigantes e
intrigantes teses ambos vêm nos fazer pensar até os dias atuais? Qual a
atualidade dos dois pensadores? Estas questões nos levam a mencionar o que vem
a seguir.
Como sabemos, tanto Freud quanto Weber testemunharam a
passagem do século XIX para o século XX. Algumas características dos períodos
anteriores a eles são relevantes para compreender a abordagem de ambos.
Por volta do século XVIII o mundo experimentou um movimento
cultural conhecido como Iluminismo, que tinha como intuito trazer uma reforma
radical para a sociedade, que até o momento ainda estava completamente tomada
pelo pensamento medieval. Baruch Spinoza (1632-1677), John Locke (1632-1704),
Pierre Bayle (1647-1706) e Isaac Newton (1643-1727) foram os principais nomes
do movimento. É possível notar que se tratava de um “movimento crítico do Absolutismo; crítico da sociedade estamental; dos
consequentes privilégios da aristocracia e do clero; crítico, enfim, das instituições
de uma ordem política considerada arcaica” (BOTO, 2010, p. 282) . Nos séculos
anteriores (aproximadamente XIV-XVII), o Renascimento e a Reforma Protestante
deram indícios de um movimento posterior que viria a ser um divisor de águas. Obviamente,
a Reforma, mesmo com ideais revolucionários no campo religioso, manteve o
discurso escatológico, indigesto posteriormente para os iluministas, já que
mantinha a base do pensamento em argumentos metafísicos. Fato é que não podemos
menosprezar uma relação evidente, ainda que por motivos diversos, entre o
Renascimento, a Reforma e o Iluminismo. Além disso, é preciso lembrar, de modo breve,
que nesses períodos até o século XX temos uma passagem marcante para a
abordagem freudiana e weberiana, a saber, a passagem do feudalismo para o
capitalismo. Com isso, o modelo de vida da sociedade se modifica, se transforma
e se civiliza. Aliás, o processo de civilização, como veremos, é marcante para
as análises de Freud e Weber. Este é o pano de fundo breve para que entendamos
as particularidades de abordagens dos autores.
Sobre o mal estar na
civilização
Para compreender Freud é indispensável conhecer como o
mecanismo psíquico, segundo ele, é composto. Nosso aparelho psíquico, portanto,
é formado pelo Id, Ego e Superego. O Id é o conjunto
dos impulsos inconscientes da libido; é a fonte da energia biológico-sexual; é o
inconsciente amoral e egoísta. O Ego é a
"fachada" do Id; é o representante inconsciente do Id; é a ponta consciente
daquele iceberg que é o Id. O Superego nasce
como interiorização da autoridade familiar e se desenvolve posteriormente como
interiorização de outras autoridades (REALE e ANTISERI, 2006, p. 69-70) . O Ego é a parte
de nosso aparelho psíquico que está entre os impulsos do Id e as restrições do
Superego (originadas da civilização). Dito de outro modo, o Ego está entre a natureza e a cultura, entre o instinto natural e o comportamento culturalmente
codificado.
Em “O Mal Estar na Civilização”, percebemos que Freud critica
o processo de civilização e, mais especificamente, um dos principais agentes
civilizatórios da humanidade, a saber, a religião. Para ele, a religião
refere-se a um sentimento oceânico, isto é, um sentimento composto de
ilimitabilidade e vínculo com o universo, comum em milhões de pessoas. Entretanto,
Freud sugere a origem da atitude
religiosa, em claros contornos, até o sentimento do desamparo infantil (FREUD, 2010, p. 17-18) . E ainda: Este ser-um com o universo, que é o seu
conteúdo ideativo, apresenta-se-nos como uma tentativa inicial de consolação
religiosa, como um outro caminho para negar o perigo que o Eu percebe a
ameaçá-lo do mundo exterior (FREUD, 2010, p. 18) . A religião,
segundo a obra, não é nada além do que a personificação de um pai, que toma o
lugar daquele a quem recorríamos na infância.
Sabemos que não temos como datar a primeira forma de religião
ou sentimento religioso, no entanto, tal possibilidade desse sentimento ou
vazio parece possível de ser verificado, segundo antropólogos, desde as
civilizações mais antigas. Para o pai da psicanálise este sentimento, mesmo
sendo dito vivido desde a antiguidade, é apenas uma das maneiras que o ser
humano pode encontrar para escapar da neurose individual. Pois, segundo ele,
existem três medidas paliativas para se livrar do sofrimento imposto pela
civilização: poderosas diversões, que nos
permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a
diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela (FREUD,
2010, p. 20) .
O autor menciona que boa
parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização;
seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições
primitivas (FREUD, 2010, p. 30) . Lembra-se aí do
homem mais que primitivo, pois este de algum modo já passou por certa
domesticação, mas o estado selvagem do homem ainda não. Segundo pode ser entendida
em Freud a felicidade humana está diretamente ligada aos prazeres. Não há satisfação
de forma plena a não ser aquela guiada pelos impulsos e/ou instintos humanos
mais que primitivos. A vida feliz, neste sentido, é a vida instintual, pois só
esta pode ser chamada livre, proporcionando ao homem a plena liberdade. Segundo
sua obra, isso não é possível na civilização, mas apenas na natureza, isto é,
nos impulsos.
Vale ressaltar que existem para Freud dois impulsos
fundamentais presentes no homem, a saber, impulso de vida e impulso de morte.
Indo as últimas consequências ele explica que tais impulsos são totalmente
reprimidos pela civilização no decorrer da história. Por isso, vale a pena trazer
a memória os períodos anteriores a Freud que mencionamos anteriormente. Mesmo
em suas modificações, reformas ou revoluções não puderam conceder ao homem a
liberdade plena, geradora da felicidade, tal como Freud entende. A neurose
individual se estabelece aí, na repressão, pois quando um instinto e/ou impulso
encontra repressão, seus elementos libidinais são transformados em sintomas e
seus componentes agressivos em sentimentos de culpa. Em suma, para Freud, a sensação de felicidade ao satisfazer um
impulso instintual selvagem, não domado pelo Eu, é incomparavelmente mais forte
do que a obtida ao saciar um instinto domesticado (FREUD, 2010, p. 24) . Vale a pena,
com isso, ressaltar o que o autor menciona com relação ao seu próprio contexto
histórico:
Nas últimas
gerações a humanidade fez progressos extraordinários nas ciências naturais e em
sua aplicação técnica, consolidando o domínio sobre a natureza de um modo antes
inimaginável. Os pormenores desses progressos são conhecidos; não é mister
enumerá-los. Os homens estão orgulhosos dessas realizações, e têm direito a
isso. Mas eles parecem haver notado que esta recém-adquirida disposição de
espaço e de tempo, esta submissão das forças naturais, concretização de um
anseio milenar, não elevou o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida,
não os fez se sentirem mais felizes (FREUD, 2010, p. 31) .
Finalmente, podemos notar na abordagem freudiana sua análise
das relações sociais, originárias já no homem primitivo. Após o homem primitivo descobrir que estava em suas mãos — literalmente
— melhorar sua sorte na Terra mediante o trabalho, não podia lhe ser
indiferente o fato de alguém trabalhar com ele ou contra ele (FREUD, 2010, p. 40) . Já aí neste
contexto se percebe o valor dado ao trabalho e a constituição da família.
Entretanto, no decorrer da história e com o avanço da civilização, bem como,
prioridade dada, por obrigação, ao trabalho Freud constata que o homem acaba
gastando toda, ou boa parte, de sua energia psíquica libidinal com o trabalho.
Obviamente aquilo que gasta para fins
culturais, retira na maior parte das mulheres e da vida sexual: a assídua
convivência com homens, a sua dependência das relações com eles o alienam
inclusive de seus deveres como marido e pai (FREUD, 2010, p. 44) . Neste contexto, não
sem razão, a mulher se encontra em segundo plano. Para o pensador, olhando para
a história, é isto que a civilização e a cultura faz. Arranca do indivíduo sua
liberdade. O coloca diante de tarefas indigestas e o pune sacrificando suas
pulsões. Muito mais poderia ser aqui exposto sobre a abordagem freudiana,
entretanto, para a proposta que estamos lidando isto é suficiente.
Sobre a ética
protestante e o espírito do capitalismo
Max Weber, como é sabido faz uma análise respeitável com
relação ao desenvolvimento do capitalismo no mundo ocidental. Em sua abordagem
a religião também tem papel fundamental. Pois busca estabelecer uma relação
entre o espírito da moderna vida
econômica com a ética racional da ascese protestante (WEBER, 1981, p. 10) . Não necessitamos
aqui explorar todos os detalhes da argumentação weberiana, mas apenas salientar
os aspectos fundamentais de sua teoria.
Para ser bastante breve e objetivo podemos notar na obra do
sociólogo supracitado que o mesmo está convencido de que o capitalismo moderno
deve seu desenvolvimento à ética calvinista. Esta ética pode ser encontrada na Confissão
de Westminster de 1647, conforme lemos abaixo:
1) existe um
Deus absoluto e transcendente, que criou o mundo e o governa, mas que o
espírito finito dos homens não pode captar; 2) esse Deus, onipotente e
misterioso, predestinou cada um de nós a salvação ou a danação, sem que, com
nossas obras, possamos modificar um decreto divino já estabelecido; 3) Deus
criou o mundo para sua glória; 4) esteja destinado a salvação ou a danação, o
homem tem o dever de trabalhar para a glória de Deus e criar o reino de Deus
sobre esta terra; 5) as coisas terrenas, a natureza humana, a carne, pertencem
ao mundo do pecado e da morte: a salvação para o homem é tão-somente um dom
totalmente gratuito da graça divina (REALE e ANTISERI, 2006, p. 62) .
É impossível não nos saltar aos olhos uma alusão fundamental
exposta na Confissão, que contribui e muito para a análise de Weber, ou seja, a
atribuição religiosa imputada ao trabalho. Vale ressaltar: o homem tem o dever de trabalhar para a glória de Deus (Ibidem). Algo
melhor para o progresso do que isso? Definitivamente não. Além disso, a
doutrina soteriológica do calvinismo proporcionou de maneira ímpar ainda mais o
desenvolvimento do espírito capitalista, pois o sucesso no trabalho indicava,
para o calvinista, o sinal da certeza da salvação. Séculos mais tarde essa
crença veio a permitir o que conhecemos hoje como teologia da prosperidade, mas
que não nos interessa totalmente especificar neste ensaio. Fato é que, como
aponta Weber, a ideia de comprovar a fé
do indivíduo pelas atividades seculares (…) forneceu, para grupos maiores de
pessoas com inclinação religiosa, um incentivo positivo para o ascetismo (WEBER, 1981, p. 54) . E ainda, o
calvinismo ao fundamentar sua ética na
doutrina da predestinação, ele substituiu a aristocracia espiritual dos monges,
desligada do mundo e superior a ele, pela aristocracia espiritual dos santos
predestinados de Deus no mundo (Ibidem). Portanto, e segundo o ponto de
partida do próprio autor, a relação iminente entre a ética protestante e o
espírito do capitalismo só poderia ter como elo não o anseio de viver feliz por
causa das próprias posses ou de uma vida anti-ascética, mas sim, um incentivo
propriamente religioso. Neste sentido, a forma religiosa que mais combinou e/ou
fez sentido com os ideais progressistas do capitalismo foi, fundamentalmente, a
ética protestante ascética do calvinismo.
Entre Freud e Weber
Pois bem, apontamos de modo bastante breve o contexto
anterior ao período em que Freud e Weber vivem com intuito de mencionar ou
indicar, ainda que indiretamente, os indícios que os levaram a abordar as
temáticas por eles expostas nas obras já referidas anteriormente por várias
vezes. Não sem razão, apresentamos suas abordagens separadamente em cada obra e
agora queremos enfatizar as respostas que podemos dar, com base no referido até
aqui, aquelas perguntas que foram expostas no início deste ensaio.
Notamos que uma análise comum nas obras de Freud e Weber
referem-se à influência do trabalho nas relações sociais. Em Freud, o trabalho
exige do indivíduo o gasto de sua energia psíquica libidinal, interferindo
diretamente na relação familiar. O homem, nesta concepção, é reprimido em seus
impulsos em detrimento do trabalho. Em Weber, o trabalho é obrigação ao homem,
pois através dele é possível glorificar a Deus e, mais ainda, possibilita que
cada um perceba o sinal da convicção de sua salvação. Com Freud ou com Weber,
percebe-se que o desenvolvimento da família, da comunidade e, posteriormente,
da sociedade exige do homem, por sobrevivência ou marca da salvação, o
trabalho. O desenvolvimento dessas esferas sociais nada mais é do que o
progresso da própria civilização. Entretanto, como já vimos com o psicanalista,
este progresso não possibilitou ao indivíduo uma vida mais feliz. Consequência
esta causada, segundo Freud, pela repressão sexual. Mas esta constatação, da
repressão sexual, também é possível se verificar na abordagem weberiana, como
se segue:
O ascetismo
sexual do puritanismo difere apenas no grau daquele monástico, mas não no princípio;
e de acordo com a concepção puritana do casamento, sua influência prática é de muito
maior alcance do que este. Por isso as relações sexuais, mesmo no casamento, só
são permitidas apenas como meio desejado por Deus para aumentar Sua glória, de
acordo com o mandamento “Crescei e multiplicai-vos”. Ao lado de uma dieta
vegetariana e de banhos frios, contra todas as tentações sexuais é usada à
mesma prescrição adotada contra as dúvidas religiosas e o sentido de
indignidade moral: “Trabalhe com vigor na tua vocação”. Mas, a coisa mais
importante é que, acima de tudo, o trabalho veio a ser considerado em si, como
a própria finalidade da vida, ordenada por. Deus. Nas palavras de S. Paulo,
“quem não trabalha não deve comer valem incondicionalmente para todos.” A falta
de vontade de trabalhar é sintoma da falta de graça. ” (WEBER, 1981, p. 75) .
Como se nota, tanto em uma quanto em outra abordagem se pode
perceber a primazia dada à civilização ou ao progresso. Freud critica
severamente esta situação enquanto Weber parece apenas constatar.
A repressão erótica, bem como, o uso indevido da energia
libidinal para o trabalho, causada pela civilização, resultou, podemos arriscar
dizer, em outro tipo de busca de satisfação dos impulsos, podendo ser comparada
a vida mais instintual do selvagem. Com o desenvolvimento do capitalismo
combinado com a ética protestante calvinista ascética ficamos diante de uma
passagem espetacular, a saber, a passagem
da ética protestante do trabalho ascético para a ética do direito ao gozo (PINHEIRO, 2008, p. 21) . Por fim, consumida
a energia libidinal do indivíduo resta ao mesmo requerer o direito ao gozo,
mas, neste caso, refere-se à satisfação instintual via consumo, que, segundo
podemos interpretar em Freud, tal método será ineficaz. Segundo Weber, o
ascetismo protestante teve o efeito
psicológico de liberalização das inibições da ética tradicional. Quebrou as
amarras do impulso para a aquisição, não apenas legalizando-as, no sentido
exposto, mas enfocando-o como desejado diretamente por Deus (WEBER, 1981, p. 81) .
Muito mais, sabemos, poderia ser explorado nas ricas obras
comentadas. Entretanto, devido à pretensão de brevidade, parece suficiente o
que até aqui foi colocado para esboçar uma possível exploração futura mais
digna da relação iminente entre Freud e Weber.
Bibliografia
Bibliografia
BOTO, C. A dimensão iluminista da reforma pombalina
dos estudos: das primeiras letras à universidade. Revista Brasileira de
Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, 2010.
FREUD, S. O Mal
Estar Na Civilização, Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos:
1930-1936. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PINHEIRO, V. S. Por
uma crítica da economia libidinal. IDE: psicanálise e cultura, São
Paulo, v. 31, n. 46, p. 16-26, 2008.
REALE, G.; ANTISERI,
D. História da Filosofia: de Freud à atualidade. Tradução de Ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, v. 7, 2006.
WEBER, M. A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo. 2a. ed. São Paulo: Pioneira,
1981. [versão digital]
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