6 de setembro de 2014

Acerca da ação livre


por Douglas Weege

“(...) over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign” (MILL, J. S. On Liberty).

Se nos dias atuais é possível defender com certa valentia e razão a chamada liberdade de expressão, muito se deve ao filósofo inglês John Stuartt Mill (1806-1873). Mill tratou de forma ímpar o tema referido na obra On Liberty, publicada em 1859. Segundo estudiosos, uma das razões pela qual o pensador foi motivado, direta ou indiretamente, a tratar do assunto veio de sua própria casa.
Isso pode ser verificado com o trecho abaixo, que destaca como fora educado Mill:

A educação começou com Grego e Aritmética aos três anos de idade. Aos oito, Mill já havia lido Heródoto, seis Diálogos de Platão e muita História. Antes dos doze, dominava Euclides e Álgebra, poetas gregos e latinos, bem como alguma poesia inglesa. Aos doze, dedicou-se à Lógica, iniciando pelo Organon de Aristóteles. Ao completar treze anos Política; as notas de estudo do filho serviram de base para que o pai, posteriormente, escrevesse os Elementos de Economia Política. Daí para frente, John Stuart Mill continuou sua educação auxiliado por amigos paternos: Direito com Austin e Economia com David Ricardo. Das obras que mais o influenciaram, destaca-se o tratado de Bentham sobre legislação que, segundo Mill, lhe proporcionou “um credo, uma doutrina, uma filosofia... uma religião” e “fez de mim um outro indivíduo” (MILL, 1996, p. 6).

            Como é possível perceber, desde a infância o projeto de vida para Stuartt Mill não era o de uma criança qualquer. Seu pai o transformou em uma máquina de pensar, como ele mesmo menciona em sua Autobiografia. James Mill pretendia que seu filho fosse “o porta-voz da escola utilitarista das novas gerações” (BALBACHEVSKY, 2001, p. 193). Não por acaso, em certa altura de sua vida Stuartt Mill vê-se dentro de uma crise, que para muitos foi acarretada devido a repressão de sua educação. O jovem Mill, assim como qualquer pessoa que entra numa crise, percebe que aquilo que tinha como meta ou objetivo de vida não passa de um sonho enganoso que não o permite a felicidade. Ele perde o gosto por coisas que antes tinha e encontra-se com um vazio existencial imenso. Felizmente sua passagem por este vazio dura pouco e o faz concluir que “são felizes apenas [...] os que se propõem objetivos diversos de sua felicidade pessoal: isto é, a felicidade dos outros, o progresso da humanidade, até alguma arte ou ocupação, exercidos não como meio, mas como fim em si mesmo” (REALE e ANTISERI, 2005, p. 307). Esses seriam fatores determinantes para a felicidade humana. 

Vale destacar diante disso que, como o próprio Mill nos informa em seus escritos, a crise ocorre vários anos antes de escrever a obra supracitada. Ela data, como já mencionado, de 1859, enquanto a crise lhe sobrevém em 1826. Não pode passar despercebido também que, apesar da contribuição paterna rigorosa e discutível, Stuartt Mill considerou Harriet Taylor, com quem se casou, responsável por seu desenvolvimento intelectual e por sua produtividade. On liberty, inclusive, teve a colaboração de sua mulher, que era comprometida com a defesa dos direitos femininos.

Informações a parte, atualmente é possível regozijar-se com a afirmação categórica de Mill: "sobre si mesmo, seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano". Isso significa, portanto, que o autor faz apologia a algum tipo de anarquia? Não. Ele esclarece logo no início de sua obra de 1859 que o que lhe interessa no ensaio não é a chamada liberdade do querer, mas a liberdade civil ou social. Mas como poderíamos diferenciar a dita liberdade do querer da liberdade civil ou social a que Mill se refere? Grosso modo, a liberdade do querer está relacionada com um tipo de vida livre absoluta, como dizem: ao bel prazer, sem qualquer responsabilidade pelos seus atos e escolhas, ou seja, cada um guia-se pelo mero desejo, impulso, vontade, satisfação do prazer. Trata-se da noção mais intuitiva possível do que se pode entender por liberdade, pois para o senso comum ser livre é poder satisfazer toda e qualquer vontade. Entretanto, esta concepção é totalmente contrária a liberdade civil ou social que Mill está interessado pensar. Aliás, pode-se arriscar dizer que no mundo civilizado, na vida em sociedade, tornou-se inaceitável seja pelos que governam seja pelos governados a dita liberdade do querer, pois esta não lida com um limite que tanto a liberdade civil quanto a social lidam, a saber, que “a liberdade de cada um encontra seu limite na liberdade do outro” (REALE e ANTISERI, 2005, p. 310).  É por este limite que, quer pelo governo quer pela sociedade, os indivíduos tem, no mundo civilizado, suas vidas regidas por leis que impedem a mera liberdade do querer, assim como de maneira geral a liberdade individual. Entretanto, esta interferência na esfera privada é um tanto polêmica, questionável e conflituosa. Por isso, Stuartt Mill esclarece que ao fitar os olhos na liberdade civil e social está na realidade indicando que sua análise se dará sobre “the nature and limits of the power which can be legitimately exercised by society over the individual” (2001, p. 6).

Não cabe aqui apresentar toda a argumentação milliana, mas ressaltar o limite que o pensador estabelece para a liberdade individual e, mais do que isso, a sua justificativa para a defesa deste limite. O pensador inglês aprova veementemente a liberdade de cada indivíduo, ponderando que sempre se respeite o princípio da autoproteção, que é não causar nenhum dano a vida alheia. Dano é a palavra-chave em Mill para compreender o único limite da liberdade. Portanto, agimos livremente na relatividade de nossa liberdade. Sou, você é, livre enquanto não causar dano a outrem. Neste sentido, o critério que estabelece uma ação livre é simultaneamente permissiva e proibitiva. Ser livre não é agir irresponsavelmente, sem preocupação com as consequências de determinada ação. A liberdade individual consiste numa vida guiada pelo contexto social de cada um. Por isso, a ação livre é um agir que requer a reflexão, o raciocínio, o fundamento na razão.

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BALBACHEVSKY, E. Stuartt Mill: Liberdade e representação. In: WEFFORT, F. Clássicos da política. 10. ed. São Paulo: Ática, v. II, 2001.
MILL, J. S. On Liberty. Kitchener: Batuche Books, 2001.
PAULA, M. G. O Estado e o indivíduo: o conceito de liberdade em John Stuartt Mill. Polymatheia - revista de filosofia, Fortaleza, v. III, n. 3, p. 73-84, 2007.
PEREZ JAIME, B.; AMADEO, R. O conceito de liberdade nas teorias políticas de Kant, Hegel e Marx. In: BORON, A. A. Filosofia Política Moderna: de Hobbes a Marx. 1a. ed. São Paulo: CLACSO, 2006. p. 405-423.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia, 5: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005.
SILVA, A. O. D. Notas sobre a liberdade e a tirania da maioria em Stuartt Mill. Revista Espaço Acadêmico, v. 9, n. 101, p. 126-134, Outubro 2009.

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